Críticas

Javyju – Bom dia
Crítica por Noah Mancini
Em um futuro não tão distante, a Terra sucumbiu à destruição ambiental. A civilização, como se
conhecia, ruiu quase por completo. No entanto, entre os restos do planeta, os povos indígenas
resistem, protegidos pelos encantados e pelo vínculo ancestral com seus territórios sagrados.
Na região onde um dia existiu a antiga São Paulo, a aldeia Guarani do Jaraguá permanece
viva. Em meio ao silêncio do mundo em colapso, um sonho coletivo traz uma mensagem
enigmática de esperança. O pajé da aldeia, guardião da sabedoria espiritual, convoca então
três jovens para cumprir uma missão: partir em direção à cidade deserta, em busca de sinais,
respostas e rastros do que restou.
Trata-se desde então de uma narrativa pós-apocalíptica (ou mais atual que imaginamos?),
ambientada em um cenário distópico onde o colapso ambiental levou à extinção da maior parte
da humanidade. Somente os povos originários sobreviveram, graças à conexão profunda com
a terra, o equilíbrio com a natureza e a proteção dos seres encantados. A expedição indígena
segue rumo à metrópole devastada, agora tomada por ruínas, tentando compreender os
caminhos que levaram à destruição.
Roupas de alta proteção decoradas com grafismos são os trajes dessa viagem, como se
andassem sobre campos radioativos. Máscaras de respiração, para não se contaminarem com
a insalubridade atmosférica que o homem branco deixou, um nefando e inabitável mundo.
Essas vestes são escudos contra a toxicidade como pele de encantado, feitas para perpassar
as dobras do tempo e do espírito. São desenhos de memória, cosmogonias vestidas com
bravura guerreira, que transformam o corpo também em território sagrado, na extensão da
floresta sonhada.
Atravessam portais para buscar segredos há muito tempo deixados para trás. Portais de pedra,
concreto, de silêncio, de sonho, de sopro ancestral. Caminham com os pés firmes sobre o que
resta da cidade-fantasma, guiadas por Ñhanderu, pelo canto invisível dos que vieram antes de
nós. Encontram o pé de uma árvore em um vaso num edifício, e precisam levá-lo de volta. Essa
muda é mais que vegetal: é a renascença fragmentada do mundo que ainda pulsa, mesmo em
cárcere de cimento. Levar a árvore de volta é devolver o florescer à terra, é restaurar o fluxo
quebrado da vida.
Após arriscada missão, precisam descansar e se curar dos malefícios das terras de lá. Cada
expedição é um sacrifício, um mergulho na podridão do que foi erguido com arrogância e
ignorância. As caminhantes retornam com a alma ofegante, contaminadas pelas cinzas do
esquecimento. Passam dias isoladas até que possam voltar à convivência habitual. Entram em
recolhimento. Banham-se em ervas, em reza, em fumaça boa. O tempo de cura obedece não
aos relógios apressados dos brancos, mas ao tambor da terra.
Sobretudo mesmo após os exercícios de cura, Wera não sobrevive à travessia, e após
complicada tentativa de recuperação, o não indígena é refém da herança de seus próprios
ancestrais. O corpo de Wera, envolto em tristeza, é o testemunho do legado de devastação que
carregava no sangue. Mesmo acolhido, mesmo amado, não pôde fugir da sentença de sua
linhagem. A cidade morta habitava seu pulmão, sua memória, seu destino.
A cena do enterro do não indígena, onde as pessoas carregam seu corpo em um suporte, com
os pés no chão pela estrada de terra e cantando uma canção em bonita cerimônia, é a sutileza
da morte do homem branco. Ali não há punição, há despedida. A terra aceita seu corpo como
quem acolhe o fim de um ciclo, com respeito, mas sem saudade. A certeza da extinção de sua
etnia é a devolutiva operando no campo do simbólico e do inevitável: o mundo que o homem
branco constrói é sinônimo de destruição, até da sua própria. É a profecia cumprida, o mito
reverso do progresso. A morte de Wera não é apenas individual — é o fim de um paradigma
que matou rios, queimou florestas e silenciou cantos.
Na distopia que esse projeto de falsa civilidade finalmente faliu, as expedicionárias caminharam
sobre escombros, cidades mortas, cheias de prédio cinzas e vazios, uma civilização que ainda
bem que desapareceu. Andaram por entre ruínas como quem pisa em feridas cicatrizadas à
força. O concreto racha como casca velha. O que um dia foi símbolo de poder agora é poeira
sem nome. Perdeu-se a língua que em outros tempos fora instrumento de colonização,
escrituras antigas, língua morta. Sumiu o verbo que invadia, que renomeava as montanhas,
que apagava os nomes originários das águas. Agora, o som que resta é o do maracá, é o vento
dizendo: “Tekó Porã”.
Os ritos cumpridos são outros, das missões destinadas a explorar as ruínas de um lugar
inóspito. São rituais de escuta, de devolução. O cinema aqui evoca o começo, as jovens
guerreiras caminham com o peso de mil histórias, resgatam o que nele ainda vibra, e com a
leveza dos que carregam o futuro em forma de semente. E no fim, é como se dissessem: o
mundo que conhecíamos morreu — mas o mundo possível segue vivo, forte, e por vir.

Semana que vem, te prometo Palmares!
Crítica por Noah Mancini
Em um fio que entrelaça passado e presente, Zumbi dos Palmares e Dandara ressurgem como
vozes ancestrais que ecoam nos dias de hoje, no que vivemos agora. Protagonistas de uma
jornada afropresentista, enfrentam os meandros instáveis de um mundo em constante
contradição. O filme caminha entre essas fabulações de ficções científicas. Seus passos, seus
olhares, seus risos, suas indignações, convidam à lembrança do que veio antes e à reflexão —
pois sua luta, forjada em fogo e liberdade, ainda pulsa nas veias do tempo. Os dois acordam
em corpos de sujeitos contemporâneos, atravessados por uma viagem cronológica secular.
O tempo, feito encruzilhada de tambor e silêncio, sussurra na pele, nos ossos e nos nervos
desses corpos, que já dançaram há muitos anos atrás sob o sol de Palmares. Estranham,
surpreendem-se, se aprazem, mas a rapadura nunca foi mole. A doçura que resta ainda
carrega o peso da cana cortada por mãos que jamais puderam cessar a luta. Vestem as roupas
que seus descendentes agora vestem, seus adornos, mas também assistem dentro de sua
casa os abusos e absurdos que continuam a acontecer com a população racializada. Os panos
são outros, os grilhões se reciclam: na TV da sala, sangue escorre em looping; já na calçada, a
ausência de justiça ecoa numa espécie de agogô quebrado. Dandara indigna-se diante de tudo
aquilo que lutou. Seu olhar, uma brasa de xirê interrompido, arde. Sua voz, que reverbera em
estado telepático das personagens e ecoa na sala de cinema em nossos ouvidos, treme com
os alicerces da memória aparentemente esquecida.
É emitido um chamado, vindo de lá, de lá pequenininho: necessitam voltar para Palmares. As
paredes da casa, construída sobre muitas mãos que vocês sabem de quem, vem junto com o
toque dos atabaques que soam longe, mas dentro do peito. O caminho de Palmares é Kalunga.
Kalunga grande, Kalunga mar, território de passagem, ventre d’água onde os ancestrais – esse
conjunto de corpos rememorantes – conversam com os vivos no murmúrio das ondas.
Para chegar a Palmares é preciso guiar pelo mar. Não o mar europeu dos colonizadores, mas o
mar encantado das Yabás, quando o axé navega em invisíveis bússolas. São sujeitos
ancestrais que encarnam e encaram a contemporaneidade com todas suas incongruências. A
flecha de Ogum busca abrir brechas no concreto do esquecimento. É tido um tempo de
acostumar, familiarizar com seu entorno. O tempo gira. Nos quartos e salas de sua nova casa,
percebem que o Brasil atual não se tornou o lar para que lutaram. É como se o quilombo de
Palmares tivesse sido soterrado sob promessas que jamais se cumpriram e seus herdeiros
estivessem à deriva.
A matriarca preta velha os adverte em sua sabedoria ancestral. Ela fala, sua voz é rezo de
benzedeira e relâmpago de Iansã. Riscam o mapa, traçam cartografias não de fuga, mas de
aquilombamento, de retornar ao ponto fulcral que nos trouxe aqui, no primo objetivo de suas
inerentes lutas. Não mais rotas de escapismo, mas caminhos de reencontro. E sob o sol que
tudo vê, juram novamente: Palmares vive, faz travessia e corpos pretos de pé, anunciam a
retomada de uma jornada que ainda não acabou.

Mãri hi – A Árvore do Sonho
Crítica por Noah Mancini
As imagens passam enquanto um desenrolar sonhador de uma árvore que faz cães e humanos
sonharem. Vídeos da mata, das plantas, das águas, da vida que sonha e flui e corre e continua
e segue e abraça como as copas das árvores, as folhas e galhos e troncos que abraçam a
floresta. E dentro desse abraço, uma pulsação antiga, se arrasta por entre frestas de luz, poros
de pedra, rachaduras do tempo.
Takes não comprometidos com a verossimilhança da formalidade canônica cinematográfica,
uma luz estourada invade (ou habita?) a tela, criando uma atmosfera outra, não palpável.
Talvez essa luz seja vapor de sonho, presença que escapa à definição. A tela às vezes pisca,
às vezes parece que desliga, mas não.
Movimentos de câmera instáveis bagunçam nossa percepção enrijecida da realidade, cortes
que não vêm, que não chegam, que se recusam a acontecer, como se o próprio filme sonhasse
consigo mesmo.
Take final, frontal, o xamã Davi Kopenawa de frente para a lente. Atrás dele, uma floresta.
Depoimento na origem de seu enunciante: sonho para um mundo outro.

Thinya
Crítica por Noah Mancini
Num mundo que tropeça nas próprias ruínas, Thinya (2019), de Lia Letícia, escorrega. Riso
curto, debochado, no rosto da história que finge ser centro — mas é só poeira dos mapas tortos
da Europa.
Thinya. Nome, sopro, eco de Maria Pastora. Voz que flutua, traduz fantasmas: Staden, Spix,
Martius — alemães disfarçados de passado — agora falam Yaathê, língua que não coube em
livros comuns. Enquanto isso, a câmera dança sobre fotos esquecidas de um outro cotidiano,
alemão, sem saber se ri, se chora, se some.
Berlim. Um mercado. Um álbum encontrado como quem acha lembranças que não são suas.
Lia costura vozes, imagens, sons, silêncios e qualquer coisa que não se explique.
Em um perspicaz jogo de imagens, entre o real e o que nunca precisou ser, o filme balança. Na
contância de uma história que parte de dois dados reais, mas de mundos opostos. Desenha um
mundo onde o exotismo se inverte, a ironia goteja, e a memória vira armadilha. Realidades
que, se aplicadas no outro lado da real história, não só fazem sentido pleno como ilustram
providencialmente a contradição. É cinema que descola. Resposta espelhamento estratégica
vingança. Que refaz o tempo, só que agora do avesso.

Thuë pihi kuuwi – Uma Mulher Pensando
Crítica por Noah Mancini
Existe uma mulher Yanomami que observa um xamã enquanto ele prepara a Yãkoana — não
não mero ritual. Essa mulher que observa é Roseane Yariana. A câmera aqui é corpo. Yãkoana
não é pó qualquer. É sopro, passagem, portal. Processada com precisão, cuidado e tempo —
tempo que não segue relógio. Inalando esse pó os jovens xamãs aprendem a ver os Xapiri,
seres pequenos, cintilantes, ancestrais e potentes, que dançam no mundo dos espíritos.
O filme, com seus nove minutos que parecem expandir o tempo, não se curva ao didatismo.
Aqui não há tradução, não há manual, não há legenda para o invisível. Há presença. O que se
impõe, então, é a potência do olhar. A fotografia — esse gesto do controle, recorte — desfaz-se
aqui do costume de ser dispositivo de captura. Ao invés de capturar, ela compartilha, torna-se
pensamento em forma de imagem. Uma mulher pensa, ela não pensa sozinha — pensa com
os espíritos, com a terra, com os ancestrais, nas linhas visíveis e invisíveis.
Contemplação, reflexão, pensamento em imagem a partir de uma ação. O que surge desse
gesto é uma forma de narrar o mundo. Os filmes aparentemente mais simples podem ser
também os mais potentes. É no exercício da observação que reside o aprendizado, onde
parada a terra absorve a água, nossos sentidos são absorvidos pelo mundo. E talvez seja isso
que o filme nos oferece: não um olhar sobre, mas um convite para olhar junto.

Geyson Fernandes e Rodrigo Sena.
Yby Katu
Crítica por Noah Mancini
Há uma infância que não é só de gente pequena, é também da terra, das águas, das palavras
que germinam no quintal, nas mãos e nas conversas. YBY KATU, quer dizer Terra Fértil, é um
filme que nasce do próprio chão, feito pelos olhos e pelas vozes dos jovens do Território Katu
Digital.
Aqui, a câmera participa, ela aprende, segue Maria, estudante, filha, neta, aprendiz de muitas
coisas que não estão nos cadernos. E segue também a avó, que planta, pesca, colhe, cozinha,
e costura o tempo com gestos que vêm de muito antes de qualquer filme começar.
Na escola, a chuva cai lá fora, e dentro, a professora abre conversas. Fala-se do Dia do
Indígena, mas se fala também do que está antes e além dos dias — das lutas, dos
apagamentos, dos reconhecimentos diários.
O pajé aparece, o caçador surge, e até a encantada cruza a tela como quem cruza o rio — sem
se explicar. Não são personagens, são presenças, partes do tecido que o filme borda, com fios
que vêm do território, da memória, da oralidade.
O gesto político de YBY KATU está no simples ato de existir, de afirmar uma comunidade que
se narra, que se vê e se reconhece na própria imagem. Aqui, fazer cinema é plantar, é gesto de
continuidade.